(Foto de Santuário de Fátima)
A Irmã Lúcia narra nas suas Memorias como foi a pandemia de 1918, a pneumónica ou gripe espanhola. A leitura dessa descrição mostra-nos a diferença civilizacional que existe quando vemos a reacção do mundo à pandemia de covid-19 ou vírus chinês. Comecemos pelo excerto das Memórias:
«A epidemia (pneumónica, de 1918) atingiu quase toda a gente. A mãe e minha irmã Glória andavam de casa em casa a tratar dos doentes. Um dia, o ti Marto foi avisar o meu pai de que não deixasse a mãe nem as filhas andar por casa dos doentes a tratá-los, porque era uma epidemia que contagiava e podíamos, também, nós, ficar doentes.
À noite, o pai, ao chegar a casa, proibiu a mãe e as filhas de irem a casa dos doentes para tratá-los.
A mãe escutou, em silêncio, tudo o que o pai disse e depois respondeu:
- Olha, tu tens razão. É mesmo assim como tu dizes. Mas, olha lá, podemos nós deixar morrer aquela gente, sem ter(rem) que lhe(s) chegue um copo de água? O melhor seria que viesses tu comigo e vias como as pessoas estão e se nós podemos deixá-los assim abandonados. E, apontando para uma grande panela que tinha pendurada na corrente da chaminé, sobre o braseiro da lareira, disse:
- Vês esta panela? Está cheia de galinhas. Algumas nem são nossas; trouxe-as de casa dos doentes, que as nossas não chegavam para tudo. Está a ferver, para fazer os caldos, e já tenho aí as panelinhas que trouxe das suas casas, para lhos levar. Se tu quisesses vir comigo, ajudavas-me a levar as cestas com as panelas dos caldos e, ao mesmo tempo, vias e resolvíamos como se há-de fazer.
O pai aceitou. Encheram as panelas de caldo e lá foram os dois, cada um com duas cestas, uma em cada mão. Daí a pouco, volta o pai com um bebé num bercinho e disse à minha irmã Glória e para mim:
- Tomai conta deste menino. Os pais estão os dois de cama, com febre, e não podem olhar por ele.
Voltou a sair e, daí a pouco, regressou com mais duas crianças que já andavam, mas ainda não podiam valer-se, e disse:
- Tomai conta de mais estas duas, que não fazem senão chorar, à volta da cama dos pais, e eles estão com febre e não podem atendê-las.
E assim trouxe mais. Não me lembro quantas. No dia seguinte, vieram dizer que também em casa da tia Olímpia, estavam todos de cama com febre. Os meus pais lá foram também tratá-los. Aí, na ocasião, melhoraram todos, mas quatro ficaram sempre com algumas décimas de febre que os foram minando e, um após outro, em poucos anos, morreram quatro: o Francisco, a Jacinta, a Florinda e a Teresa.
Nesses dias, os meus pais não faziam outra coisa mais que andar de casa em casa, a tratar dos doentes. O pai com o meu irmão Manuel tratavam dos animais que estavam nos currais a gritar com fome, e tiravam o leite para se dar aos doentes e às crianças. (...) Foi tão grande a necessidade, que meus pais não hesitaram em deixar-me ir ficar, algumas noites, em casa de uma viúva que vivia só com um filho que estava tuberculoso no último grau, para que ela pudesse descansar, sabendo que tinha ali uma criança de 11 anos, que chegasse ao filho um copo de água ou uma tigelinha de caldo, ou a chamasse, se ela precisasse de outa coisa. (...) Também advertiram o meu pai de que era temerário deixar-me ir a essa casa porque podia contagiar-me. O pai respondeu:
- Não há de Deus pagar-me com o mal o bem que eu faço por Ele!
E assim aconteceu! A confiança de meu pai não foi confundida, que tenho quase 82 anos e ainda não senti o mínimo vestígio dessa doença! (Memórias da Irmã Lúcia V, nº 3, pp.19-21)
O que vemos neste magnifico trecho? É muito simples: a Cristandade, isto é, a civilização cristã em acção exprimindo as suas virtudes: a caridade, amar o outro como a si mesmo, a heroicidade, a capacidade de sacrifício, a consciência de que estamos vivos e podemos morrer e de que morrer a fazer o bem é melhor do que viver covardemente encerrado em casa; e ainda, a confiança em Deus.
Um século volvido, temos a polícia a percorrer as estradas e altifalantes avisando: «Fique em casa»; e estamos proibidos «para nosso bem», naturalmente, de sair de casa, de ir trabalhar, de ir ajudar um vizinho, de ir ao hospital ver o nosso pai ou a nossa mãe pela ultima vez, ou de o ir buscar ao lar, ou de ir a um funeral, etc., etc., etc...
Colocadas lado-a-lado, parecem duas civilizações diferentes. E são.
O que aconteceu, pois entre as duas civilizações? Como chegamos a este ponto de extremo egoísmo e covardia? A resposta é simples: a Cristandade decaiu na Europa. Agora somos uma civilização sem esqueleto, sem dimensão vertical; em duas palavras: sem Deus.
Somos uma civilização que trocou as virtudes objectivas e universais, como as que enunciamos acima por 'valores' subjectivos e individuais. E esta decadência civilizacional é incomparavelmente mais grave do que qualquer pandemia. Melhor dito: esta decadência civilizacional é muitíssimo mais contagiosa do que qualquer variante de covid.
(Texto de Pedro Sinde...In Sol)